Editorial: o Quebec é racista?

Editorial
O Quebec é racista?
Por Bruno Hildebrando 

Nas últimas semanas o governo de François Légault, Primeiro Ministro do Quebec, tem preparado um projeto de lei a ser votado na Assembléia Nacional que deve proibir o uso de vestimentas e adornos religiosos por parte de servidores públicos em posição de autoridade, como policiais e juízes. Foram incluídas na lista professoras das escolas primárias e secundárias.
Em muitos veículos de comunicação, colunistas acusam o atual governo quebequense de ser racista, pois a nova lei visa especialmente as mulheres muçulmanas que vestem o véu que cobre a cabeça. Claro que não são o único alvo: judeus que usam a kipa e os indianos Sikh que usam o turbante também serão impedidos de usar tais adornos.

À medida que a proposta de Légault começou a tomar forma - era uma promessa de campanha - a opinião pública começou a ficar chocada ao ver na televisão e nos jornais os rostos e os nomes das pessoas que seriam atingidas pela nova lei. Por isso, foi adicionada uma cláusula que garante que quem usa uma vestimenta ou adorno religioso e que já ocupa a função descrita na lei, poderá continuar a se vestir como antes, desde que fique nessa função. A lei valeria para quem for contratado depois da implementação da lei. Chama isso de cláusula grandfather, ou granpérisé. Vem do termo “avô”. É o equivalente no Brasil ao que chamamos de “direito adquirido”. 

Para evitar que a lei seja contestada na justiça, pois a Carta Canadense de Direitos e Liberdades é expressamente contrária ao projeto de lei de Légault, o governo do Quebec vai apelar para a condição de “notwithstanding”: trata-se de uma saída jurídica para quando o governo provincial não está de acordo com uma lei federal. Não é privilégio exclusivo do Quebec, e pode ser usado por qualquer província. Dizem alguns comentaristas e ativistas que esta lei pode ser questionada em âmbito internacional, pois fere algumas cláusulas de decisões das Nações Unidas. 

Todo esse cenário nos leva a uma questão importante: o Quebec é racista?

Antes de responder de forma apropriada a essa pergunta, é preciso pensar muito bem na história e no conceito de certos termos hoje amplamente vulgarizados nas mídias sociais.

Não é possível classificar o Quebec como sendo uma jurisdição racista. Basta comparar com países como a África do Sul antes do fim do Apartheid, onde brancos, negros e pessoas “de cor” eram separadas por lei. Haviam locais onde somente brancos poderiam entrar, e outros destinados aos negros. Chegava-se ao ponto de serem proibidos casamentos entre brancos e negros. O apresentador de talk show Trevor Noah, que vive nos Estados Unidos, veio da África, e seus pais eram de raças diferentes um do outro. Ele não podia andar na rua de mãos dadas com a sua própria mãe. Outro exemplo foram os estados do sul dos Estados Unidos, onde até os anos sessenta os negros eram separados dos negros. Isso era lei. 

O Quebec está muito longe disso. Não há lei alguma que separe as pessoas por raça, ou que estabeleça um nível de hierarquia racial entre os cidadãos. Por isso, enquanto “estado”, ou jurisdição, o Quebec não é racista.

Mas e a sociedade quebequense? Seriam os quebequenses racistas?

Por causa desse projeto de lei do chamado governo “caquista” (vem do nome do partido de Légault: Coalition pour l’Avenir du Québec, ou CAQ), muita gente acusa o atual Primeiro Ministro de racista, e fazem essa mesma pergunta, isto é, seria a sociedade quebequense racista?

Os termos têm significado específico, e uma razão para terem o significado que possuem. Racista não é a mesma coisa que xenófobo. Falam muito da islamofobia, isto é, a discriminação direcionada contra os muçulmanos. As palavras têm sentido, e ser muçulmano não significa pertencer a uma raça, e sim pertencer a um amplo grupo de pessoas que seguem uma religião. Sim, podemos dizer que os árabes seguem o Islamismo, mas não são apenas árabes: há negros que seguem o Islã. E entre os árabes há povos muito distintos entre si: marroquinos e libaneses são diferentes povos, com culinárias diferentes. Os iranianos nem árabes são, e a mesma coisa se pode dizer dos paquistaneses. O país com a maior população muçulmana do mundo está na Indonésia. São asiáticos.

Há dois anos atrás um jovem quebequense invadiu uma mesquita na Cidade do Quebec e matou seis pessoas, além de ferir outras dezenove. Sim, existem pessoas radicalizadas. Mas a sociedade quebequense condenou o ato. E o rapaz foi condenado à prisão perpétua, com direito à apelação somente depois de quarenta anos de detenção. Apesar da condenação não ter sido feita com base na lei de terrorismo, o que ele fez se encaixa perfeitamente no conceito de um ataque terrorista. E quem comete atos terroristas, terrorista é. E ele não representa a sociedade como um todo. De jeito nenhum. 

Não. Essa nova lei, apresentada por Légault, não é racista. Ela talvez possa ser classificada de xenófoba, mas racista não é. Mas antes de falarmos sobre o aspecto xenófobo dessa lei, é preciso terminar de responder à pergunta: a sociedade quebequense é racista?

Mas e o movimento soberanista do Quebec?

Para muitos críticos, o movimento separatista do Quebec, ou soberanista, para termos uma tradução mais apurada do nome em francês, seria um momento étnico nacionalista. Seria uma auto-afirmação dos quebequenses enquanto nação, isto é, um povo distinto, com um idioma próprio, reclamando um território específico. Mas quem seria um verdadeiro québécois, ou quebequense? Apenas os descendentes dos colonizadores franceses dos séculos 16 e 17? Ou seria quem é nascido no Quebec, cujos pais e avós nasceram na província, e que falam o francês em casa como idioma materno? E os anglófonos que vivem aqui há gerações e que falam o inglês como idioma materno, seriam ou não quebequenses? Existe um termo para identificar os quebequenses francófonos, nascidos no Quebec, e cujas famílias vivem aqui há gerações: eles são o que se chama de quebequenses “pure laine”, ou pura lã. É uma expressão parecida com o que se usa no Rio de Janeiro, o tal do “carioca da gema”. 

Essa é uma longa discussão, sobre quem é e quem não é quebequense. Dizem que se o Quebec quer integrar os imigrantes que acolhe, deveria ampliar esse leque. Quem tem a cidadania, fala o francês, e mora aqui há tempos, seria um quebequense também?

Mas quando falamos de um povo ou sociedade racista, é preciso levar em consideração a realidade nas ruas, nos parques, no metrô, no supermercado, nas escolas e universidades, e no trabalho. E a realidade é que, ao menos em Montreal, a sociedade em geral é uma verdadeira Babilônia. Muitos brasileiros que vivem na cidade podem dizer que conhecem pessoas de várias dezenas de países, de todos os continentes. A sociedade brasileira é miscigenada, mas é fruto de uma imigração que ocorreu há muito tempo, e houve tempo para a miscigenação tomar forma e amplitude. No Quebec, especialmente em Montreal, a imigração não-européia tem ocorrido desde os anos setenta, quando muitas crianças vietnamitas foram adotadas por casais de quebequenses - era a época da guerra do Vietnã. A onda de imigração brasileira começou para valer a partir de 2004-2006, e a nossa comunidade é uma das mais recentes por aqui. Assim como diversas outras. 

No passado vieram os irlandeses, judeus, italianos, gregos e portugueses, entre alguns outros. Hoje vem gente de todo o mundo para Montreal. E muitos, de uma forma ou de outra, com maior ou menor sucesso, encontra seu lugar ao sol. Seria isso possível numa sociedade racista?

Não, não vamos negar que exista discriminação nos processos de recrutamento. Não, não vamos negar que existam pessoas racistas. Mas isso existe também no Brasil, onde crianças negras que entram em lojas são levadas até a porta. Isso já virou folclore no Brasil: casais de europeus que adotaram uma criança negra e que acusam uma determinada loja de racismo porque o segurança pediu para a criança sair da loja. E o caso recente de alunos de uma escola pública que foram barrados na entrada de um famoso shopping center em São Paulo?

Dizem que os quebequenses são protecionistas com relação aos bons empregos, e que quem não tem um nome e sobrenome francês tem menos chances de emprego. Essa é uma outra discussão que vai ficar para outro artigo, pois envolve outros aspectos além do nome e sobrenome. Envolve contatos pessoais, local de formação acadêmica e experiência profissional. 

Não, não podemos chamar o Quebec como uma jurisdição onde exista um racismo legal. Também não podemos generalizar e acusar “a sociedade” quebequense de ser racista, e nem tampouco xenófoba. Assim como não existem leis que definam o que é raça, ou que dividam a sociedade em raças, com seus privilégios e restrições, tampouco isso existe em termos de xenofobia. Ou os imigrantes não poderiam adquirir a cidadania. 

Mas e a tal da nova lei que atinge as mulheres que cobrem a cabeça com o véu muçulmano?

Como em qualquer sociedade, há grupos de pressão mais influentes do que outros. Por exemplo: foi divulgada recentemente uma pesquisa mostrando que a maioria dos quebequenses são a favor da idéia de comprar petróleo da província de Alberta ao invés de importar da Arábia Saudita, tal como é feito hoje em dia. Mas o Primeiro Ministro François Légault disse que no Quebec “não há clima político nem social para a construção de um óleoduto vindo de Alberta passando pelo território do Quebec”. O que significa isso? Que uma parte da elite cultural e política do Quebec pensa de uma maneira, mas a maioria das pessoas pensa de outra.

A nova lei de François Légault visa de forma quase expressa as mulheres muçulmanas, e a posição da editoria da revista Aquarela Magazine é contra essa lei. Mas não concordamos com a idéia de que a sociedade quebequense seja xenófoba ou racista, e muito menos o Quebec como um todo. 

Existe um outro projeto de lei que François Légault quer emplacar, a qual determinaria que os novos imigrantes, quando completarem três anos vivendo no Quebec, teriam que fazer um exame de francês e responder corretamente a uma série de questões sobre os chamados “valores quebequenses”. Esse é um outro precedente legal para a institucionalização de dispositivos que podem ser considerados xenófobos. 

O governo atual foi eleito por uma série de razões, não apenas pelas propostas direcionadas aos imigrantes, entre essas razões estaria a fadiga com os sucessivos governos do Partido Liberal do Quebec, o chamado PLQ, e a desilusão com o Partido Québécois, o chamado PQ, devido à suas propostas de referendo separatista e os impactos que isso iria trazer à economia e à sociedade. Foi o primeiro governo eleito fora da dicotomia partido federalista versus partido separatista, e esse foi considerado um aspecto positivo das últimas eleições provinciais. Porém, suas propostas com respeito aos imigrantes abrem precedentes perigosos que podem eventualmente atingir a todos os imigrantes.

Discordamos da lei do véu porque não concordamos que cabe ao governo dizer o quê e como as mulheres devem se vestir. E não aceitamos comparar a sociedade quebequense com a sociedade de países onde as mulheres são obrigadas a usar o véu. Porque são sociedades diferentes, com valores diferentes. E é por causa dessa diferença que muitos imigrantes escolheram viver aqui, e continuam vivendo aqui. Ou fariam uma outra escolha. 

Não, o Quebec não é racista, nem xenófobo. Não, a sociedade quebequense não é racista nem xenófoba. Mas há grupos de pressão que querem mudar algumas leis e que podem mudar as coisas. A situação nunca é estável, e numa democracia é nosso papel defender nossos direitos. 

Essa é uma longa discussão, e ela não se encerra num artigo. Converse com seus amigos e amigas. Leia o que é publicado nos jornais, o que passa nos telejornais, o que é postado nos sites de notícias. Faça sua reflexão. E seja benvindo ao Quebec!

Referências:

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