Editorial: pelo direito de reclamar

Editorial
Pelo direito de reclamar
Por Bruno Hildebrando 

Há alguns dias atrás, no Facebook, um brasileiro postou numa das comunidades de brasileiros residentes em Montreal, uma lista de pontos negativos da cidade, todos enumerados para facilitar o debate. Ele perguntava quais seriam os pontos que os internautas concordavam com ele. Esse post gerou atenção de muita gente, inclusive de um quebequense que trabalha com entretenimento, é conhecido na televisão, e que já esteve no Brasil. Essa pessoa se ofendeu com o post, e como resposta fez um outro post criticando o post do brasileiro.
Essencialmente, a réplica desse quebequense (*) foi dizer que quem vem de um país como o Brasil não pode criticar o Quebec, pois para muitos brasileiros que ainda estão no Brasil viver no Quebec seria um “sonho de consumo”, e que quando estamos em outro país nós não estamos na nossa casa, por isso devemos agir como visitantes. Na opinião dessa pessoa, fazer reclamações e críticas seria um gesto de grosseria, e como exemplo a ser seguido, ele disse que ele próprio passou muito tempo no Brasil sem reclamar dos diversos problemas que teria visto ou experimentado. Ele ficou chocado não só com o post do tal brasileiro, mas com os comentários desse post também. Não demorou muito para o internauta quebequense deletar o seu post, possivelmente por causa das respostas que recebeu.

É sobre essa réplica o tema desse editorial.

Existe uma diferença enorme entre passar uma temporada em outro país a trabalho ou com objetivos acadêmicos, e ir morar em outro país. Até onde sabemos, essa pessoa foi ao Brasil a trabalho, tendo inclusive feito chamadas ao vivo para emissoras canadenses de televisão durante grandes eventos no Rio de Janeiro, como Carnaval, por exemplo. Mesmo que passe um, dois ou três anos, ainda assim estamos falando de um visitante, um residente temporário. Coisa muito diferente de brasileiros e brasileiras que, após terem assistido a uma palestra de representantes do governo do Quebec, decidem deixar tudo para trás no Brasil e vir morar na terra de René Levèsque e da Celine Dion. Há alguns anos, a maioria dos brasileiros que vinha morar em Montreal e outras cidades quebequenses recebia o status de residente permanente logo na sua chegada em solo canadense; hoje, muitos chegam com visto de estudo e trabalho. Mas de qualquer forma, a esmagadora maioria veio aqui para ficar. Não estão aqui representando a Rede Globo, ou a Folha de São Paulo, nem tampouco trabalham para o Ministério das Relações Exteriores. Foram aceitos pelo Quebec, e existe um documento chamado Certificado de Seleção do Quebec, o qual é usado para solicitar às autoridades federais do Canadá o visto que eventualmente se transformará em residência permanente.

Até onde sabemos, o Quebec faz parte da jurisdição do Canadá, o qual é considerado um país democratico, onde vigora o estado de direito. Sem entrar em discussões sobre a soberania do Quebec, o que vigora no Quebec é a democracia, onde os residentes permanentes têm os mesmos direitos e obrigações que gozam e usufruem os cidadãos nativos – exceto participar de eleições e de se candidatar a certos empregos públicos. Depois de um periodo de cinco anos vivendo no país, os residentes permanentes podem eventualmente adquirir a cidadania, e então passam a usufruir de todos os direitos civis, sem exceção. Como em qualquer outra jurísdição onde impera a democracia, todos os cidadãos são iguais perante a lei e o direito. Por isso, chocou muito o ponto de vista dessa personalidade da mídia quebequense, ao afirmar que os brasileiros não tinham direito de reclamar por terem vindo de um lugar muito pior, como se o Quebec tivesse feito um favor à nossa comunidade ao nos encorajar a vir para cá.

Sim, os brasileiros, assim como todos os outros imigrantes, têm o dever moral de participar da vida civil e social do Quebec. Saber falar o francês é importante, mesmo que a pessoa tenha preferência em falar inglês; é importante conhecer a história do Quebec, as personagens que construíram o lugar onde decidimos viver; depois de ter adquirido a cidadania, participar das eleições; acompanhar as notícias locais, enfin, saber o que está acontecendo. Sim, tudo isso foi dito no post em questão, e a revista Aquarela Magazine concorda com esse ponto. Outro ponto em que concordamos é que muitas vezes a forma com que são apresentadas as críticas de alguns brasileiros pode ser muito forte, e às vezes, a pessoa é mal informada. Mas mesmo assim, quem vive aqui de forma legal, e não é um residente temporário, tem o direito sim de reclamar e criticar. Quem faz críticas pesadas ou de forma agressiva corre o risco de não conseguir se envolver na sociedade e, portanto, alienar-se da vida social no Quebec.

A perspectiva desse quebequense choca porque ficou claro no seu texto a forma como os brasileiros são vistos não só por ele, mas por muita gente que pensa como ele. Não é fácil para ele entender que, no Quebec, a maior parte dos brasileiros não estava enfrentando dificuldades financeiras ou sociais no Brasil. Para quem tinha um bom plano de saúde no Brasil, o sistema de saúde pública no Quebec pode deixar a desejar. Para quem vivia em bairros como Moema, em São Paulo, ou Batel, em Curitiba, o desenvolvimento urbano de Montreal não impressiona tanto assim. O que nos agrada é a parte invisível do desenvolvimento daqui: a segurança pública é o fator número um citado pela maioria dos brasileiros quando decidiram vir morar no Quebec. Mesmo assim, é muito triste ver uma pessoa que diz que “ama o Brasil”, e que aprendeu a falar o português brasileiro, ter uma visão tão paternalista da nossa comunidade.

Para encerrar essa reflexão: temos o dever moral e cívico de conhecer a sociedade e a história do Quebec, e de participar da vida social e cultural do lugar que escolhemos como nosso novo lar. E isso incluir reclamar, exigir que nossos direitos sejam respeitados, e que nossa voz seja ouvida. Mesmo se alguns brasileiros fazem críticas exageradas, descabidas, ou fora de contexto, ainda assim é melhor desfrutarmos da liberdade de expressão do que a mordaça do silêncio forçado, imposto por quem quer negar o direito de novos cidadãos de dizerem o que pensam. Não somos obrigados a aceitar tudo de boca calada, como se todos os que escolhem viver aqui fossem almas miseráveis, como se o fato do governo quebequense ter concedido o CSQ aos brasileiros fosse um gesto humanitário. Há muitos anos o governo do Quebec e do Canadá fazem campanha na mídia brasileira a respeito do processo de imigração, e promovem palestras sobre esse assunto em universidades Brasil afora. Como cidadãos canadenses, residentes no Quebec, temos o direito de reclamar, tal como todos os outros cidadãos quebequenses, sejam imigrantes ou “pure laine”. Não somos inferiores aos outros imigrantes, sejam da França ou de qualquer parte da Europa ou do mundo da Francofonia. 

Afinal de contas, não existem problemas em Montreal? A administração federal, provincial e municipal, seriam imaculadas? 

A revista Aquarela Magazine promove os brasileiros em Montreal, e encoraja toda a comunidade a participar da vída social, cultural e política do Quebec. Mas permanece ao lado da comunidade brasileira, em defesa dos seus interesses e de seus direito. Inclusive pelo direito de reclamar. 


(*) Decidimos não publicar o nome da pessoa em questão para evitar exposição desnecessária. Esse editorial é uma crítica ao que foi postado no Facebook, e não tem o objetivo de atacar uma pessoa.
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