Editorial: o brasileiro não forma gueto?

Editorial
O brasileiro não forma gueto?
Por Bruno Hildebrando 

Muitos brasileiros gostam de dizer que “o governo do Quebec (ou do Canadá), gosta dos brasileiros porque brasileiro não cria gueto”, como se isso fosse uma grande vantagem para nós, comparados com outros grupos de imigrantes. 
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, se o governo do Quebec, ou do Canadá, decidir priorizar um grupo em detrimento de outros, provavelmente vai ser tachado de racista ou xenófobo. Foi o que aconteceu há poucos meses atrás, quando o Primeiro Ministro do Quebec, François Legault, em visita oficial à França, disse, logo após uma reunião com o Presidente Macron, que apesar de ele ter decidido restringir o número de imigrantes aceitos no Quebec, os imigrantes franceses e europeus em geral são qualificados e por isso mesmo benvindos. “É claro”, disse Légault. Foi o bastante para ser achincalhado na mídia e nas redes sociais.

Também é preciso contar a história de Montreal: até meados do século 20, a cidade era literalmente dividida em duas partes: o lado oeste e o lado leste, da boulevard Saint Laurent. O lado oeste era inglês e o lado leste, francês. Por isso, os primeiros grupos de imigrantes acabaram se instalando ao longo da Saint Laurent: o Quartier Chinois e a Petite Italie, ou Chinatown e Little Italy, são localizadas na Saint Laurent, assim como o Petit Portugual, e muitos gregos e judeus ali se acomodaram. Com o tempo, as pessoas que pertenciam a essas comunidades passaram a se espalhar pela cidade. Mas até hoje suas marcas e sua história estão cravadas na boulevard Saint Laurent.

Nos dias de hoje poucos grupos estão tão concentrados em uma área específica a ponto de tomar conta de uma determinada região. Sim, existem bairros com maior concentração latino-americana ou haitiana. Há mesmo uma região com alta concentração de imigrantes do Sul da Ásia (Bangladesh, Índia e Paquistão) perto da estação de metrô Avenue Du Parc, e uma outra conhecida como Le Petit Maghreb, por causa da presença de muitos imigrantes da Argélia e do Marrocos. Mas mesmo assim, é difícil encontrar o que se entende por “gueto” étnico. Onde fica o gueto romeno? Ou o gueto argentino? E o gueto vietnamita, fica aonde? Montreal recebe imigrantes de mais de noventa países, e poucos são os grupos que ficam concentrados em um bairro específico. 

Mas existe um outro gueto, invisível, e nem por isso menos forte. Trata-se do gueto cultural. E desse gueto, quase ninguém escapa ileso. Nem mesmo os brasileiros. 

Vamos imaginar um imigrante brasileiro hipotético. Ele veio para Montreal com a esposa e duas crianças. Ele trabalha em uma empresa multinacional de informática, e em sua equipe trabalham vários outros brasileiros. A esposa estuda ou trabalha, além de cuidar dos filhos. As crianças, lógico, aprendem francês rapidamente e provavelmente falam inglês também. O nosso amigo joga bola nos sábados com um grupo de brasileiros, a mulher vai a um salão de beleza cujas donas são brasileiras, e eles fazem passeios e churrascos com outros casais de brasileiros. Aos domingos, frequentam ou uma igreja evangélica ou um centro espírita organizado por brasileiros. Viajam uma vez por ano ao Brasil, e familiares vêm visitá-los uma vez por ano. Sim, claro: o casal assina a Globo Internacional; afinal de contas, a esposa gosta das novelas e o marido não quer perder os jogos do Brasileirão. 

A situação descrita acima é o que podemos chamar de bolha cultural. Esse casal é hipotético, mas nem por isso longe da realidade de muita gente que vive em Montreal, e quiçá mesmo em Toronto, Vancouver ou Calgary. Em maior ou menor grau isso acaba acontecendo com a maioria de nós. 

Mas isso não é necessariamente ruim. Pelo contrário. Uma pessoa que vive em seu país de origem está cercada por familiares, amigos mais próximos, amigos dos amigos e colegas de trabalho, e toda essa rede de contatos foi criada ao longo dos anos, desde o jardim de infância. Mesmo no Brasil nós criamos nossa bolha, e vivemos cercados por pessoas que nos conhecem e com quem temos afinidades, seja por amor ao churrasco, ou ao futebol, jiu-jitsu ou surfe. 

O ser humano é um animal sociável, e precisamos nos socializar e nos relacionar com pessoas com as quais temos afinidades e interesses em comum. Por isso, quando imigramos, sentimos um choque muito grandes pela sensação de isolamento e perda afetiva. Isso explica o fato das pessoas frequentarem igrejas evangélicas e centros espíritas, por exemplo. Para muita gente, a fé é algo importante demais para ser deixada para trás quando imigram. Aos poucos, as pessoas constroem uma rede de amizade que lhe dá suporte moral, emocional e mesmo espiritual. 

Muita gente vai dizer que é preciso “sair da bolha” para conhecer e vivenciar o país que escolheu para viver. Nada mais justo. Mas cada um de nós tem a sua força, os seus pontos fracos, o seu estilo pessoal. Algumas pessoas têm mais dificuldades em sua adaptação social no Quebec, ao passo que outras conseguem formar sua rede de amizade fora da comunidade brasileira de forma mais fácil. Cada um tem um estilo pessoal, uma trajetória única, seu próprio ritmo, seus próprios desafios. Esteja a pessoa rodeada por brasileiros ou completamente isolada da comunidade.

Dizer que o governo do Quebec gosta dos brasileiros porque “não formam gueto” é uma expressão descolada da realidade. Se o governo quebequense gostasse mesmo de brasileiros, não teria tirado do escritório do Quebec em São Paulo as funções e responsabilidades relativas ao programa de imigração. Também não teria mudado o programa de imigração da maneira que mudou nos últimos anos: em 2005 e 2006, a maioria dos imigrantes brasileiros chegavam com o status de residente permanente, e tinham acesso ao curso gratuito de francês, e muitas vezes com ajuda financeira, além de palestras de orientação para recém chegados. Hoje a maioria dos brasileiros chega em Montreal com visto de estudante e permissão de trabalho, o que os obriga a pagar caríssimo por cursos que normalmente custam muito menos aos brasileiros que já são residentes permanentes. 

O ato de imigrar significa aceitar riscos, perdas e ganhos, e é bom termos por perto pessoas as quais amamos e com as quais temos afinidades. Imigrar significa reconstruir toda uma rede de amizades, selecionando amigos através de atividades sociais como esporte, música, entretenimento, igreja, turismo e gastronomia. Tudo isso implica em reconstruir o mundo que nos cerca. Essas pessoas podem morar no mesmo edifício que moramos, ou do outro lado da cidade, mas de uma maneira ou de outra, elas estão próximas de nós. Fazem parte do nosso gueto. 
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