Editorial: o lado triste do Canadá

Editorial
O lado triste do Canadá

Por Bruno Hildebrando (publicado em 10 dezembro de 2014)

Muitos imigrantes se sentem felizes por terem imigrado ao Canadá e com o tempo criam raízes por aqui. Sem dúvida trata-se de um país civilizado, um lugar adequado para criar os filhos, para estudar idiomas ou um curso universitário.
Mas o país também tem seu lado triste, ou como alguns mais enfáticos prefeririam, um lado escuro. Mas o que justificaria tais expressões associadas à este belo país que nos acolhe?

Nenhum país é perfeito e sem defeitos

Assim como o Brasil tem aspectos belos e maravilhosos, o Canadá também tem seu lado triste e sombrio. O Brasil é um país onde as pessoas são em geral hospitaleiras e acolhedoras, uma culinária sensacional, grande variedade musical e de qualidade, o Brasil tem muitas coisas boas a serem ressaltadas. E também tem sua face nem tão bela quanto se imagina. Por acaso não foi a violência que fez com que muitos de nós viessemos a imigrar ao Canadá? Ou a situação econômica? Amamos o Brasil, mas há problemas demais em nossa terra amada.

Este artigo não tem a intensão e nem mesmo a pretensão de julgar e condenar o Canadá pelos seus problemas e seu passado, e com isso dar um veredito sobre seu caráter, expor suas verdadeiras cores, como dizem os anglófonos. O Canadá tem muitas qualidades, e muitos imigrantes são felizes vivendo aqui. Num outro artigo podemos explorar o lado positivo e radiante do país; neste texto, entretanto, vamos tratar de outros aspectos, com o intuito de nos fazer refletir um pouco mais sobre o país que adotamos e que nos acolheu.

Até os imigrantes russos reclamam do frio

Podemos começar logo de cara com o inverno, que é realmente de matar. Falamos do segundo maior país do mundo em extensão territorial, porém mais de oitenta porcento do território é praticamente inabitável. Os territórios do Yukon (vizinho do Alaska), do Noroeste e de Nunavut compõem cerca de cinquenta porcento da área do Canadá, porém não chegam a somar juntos mais de duzentos mil habitantes. Até mesmo a Amazônia brasileira tem mais seres humanos do que este vasto território. E não é por questão de geografia, mas de clima: existem regiões belíssimas, ricas em recursos naturais e que poderiam abrigar facilmente cidades e populações. Mas e por que isso não ocorre? A resposta é bem simples: o frio.

No inverno todo mundo vai para a Flórida

Mas a grande maioria dos imigrantes que vêm ao Canadá acabam por se estabelecer, em sua grande maioria, em cidades como Toronto, Montreal e Vancouver. Calgary e Edmonton estão mais ao norte, e tem cada uma cerca de um milhão de habitantes cada. Mas mesmo não residindo no sertão gelado do Canadá, como no norte de Manitoba, ou na fronteira do Yukon com o Alaska, o frio incomoda muita gente. 

Não é à toa que, de tantos canadenses aposentados que passam o inverno na Flórida ou mesmo em outros locais ao sul dos Estados Unidos, já criaram um nome para essas pessoas: snowbirds. Uma forma de associá-las com as aves migratórias que vêm e vão de acordo com as estações do ano.

Frio em Curitiba vs frio em Montreal

Mas tem muita gente que não se incomoda com a neve e consegue conviver com o frio numa boa. Dizem que sofremos mais de frio em Curitiba e no resto do sul do Brasil do que em Montreal ou Toronto. O sistema de aquecimento no Canadá é bastante utilizado, o que não ocorre em terras brasileiras. Os canadenses que visitam Curitiba no inverno reclamam do frio, dizem que sofreram mais com o frio lá do que no Canadá.

Na capital paranaense o frio está ao lado da cama, ele aparece assim que desligamos o chuveiro. No Canadá o aquecimento permite à pessoa ficar de camiseta dentro de casa, enquanto que do lado de fora a temperatura chega à trinta graus abaixo de zero. Porém a conta da eletricidade ou do aquecimento pode ser salgada. Aviso importante para os imigrantes brasileiros recém chegados no Canadá: fique de olho nos aquecedores da sua casa.

Imigrantes: integração econômica vs integração social

É verdade que o Canadá é um país desenvolvido e a democracia é consolidada, mais avançada do que no Brasil. Juízes não mandam prender guardas de trânsito quando solicitados a mostrar os documentos, ou os atendentes da companhia aérea porque não permitiram o embarque depois que a aeronave já está na pista pronto para decolar... coisas do Brasil, como bem conhecemos. Mas a discriminação racial e social existe no Canadá, ou o índice de desemprego entre os imigrantes não seria tão mais alto do que no resto da população. A situação é pior nos Estados Unidos, mas o Canadá não está imune à este tipo de problema.

Na província do Quebec, em 2014 a taxa de desemprego entre os canadenses nativos foi em média pouco superior à cinco porcento, mas entre os imigrantes asiáticos superou os doze porcento, entre os latino americanos foi em torno de quatorze a quinze porcento, e entre os imigrantes africanos passou de vinte porcento. 

Quantos artigos já não foram escritos, quantas reportagens não foram feitas, quantos debates não foram organizados nas universidades, nos programas de televisão, nos pubs e nas casas das pessoas, sobre os já típicos motoristas de táxi com mestrado em engenharia civil ou médicos que se tornam donos de lojas de conveniência, ou advogadas que se tornam babás ou telefonistas de call centres.

Discriminação vem de longa data

A discriminação contra os imigrantes não é novidade no Canadá: a estrada de ferro que liga as províncias do leste ao oeste do país foi construída com o suor de muitos chineses, a ponto de o governo federal da época, início do século XX, instituir um imposto por cabeça, uma taxa per capita, por cada imigrante vindo da China. 

Quando eclodiu a II Guerra Mundial, os canadenses de origem japonesa foram enviados a campos de concentração, assim como os italianos, pouco importando se eram nascidos no Canadá e que nunca tinham sequer pisado nem na Itália ou no Japão. Existe um documentário com uma entrevista de David Suzuki, famoso apresentador do programa The Nature of Things, da CBC, onde ele fala de sua experiência no campo de concentração e mesmo depois da Guerra. 

Bairros étnicos em Montreal, Toronto e Vancouver

É até hoje visível em Montreal a concentração geográfica das primeiras comunidades de imigrantes: os judeus, os italianos, os portugueses e os gregos não ficavam nem do lado inglês nem do lado francês da cidade, respectivamente o lado oeste e leste de Montreal. 

A grande maioria dos imigrantes desta época fixou residência nas proximidades da boulevard Saint Laurent. Sim, eles se expremeram entre os dois lados. Em Toronto há muito tempo atrás a prefeitura quis acabar com a Chinatown, e desapropriou quase metade do bairro para instalar a nova sede da prefeitura. O fato é que todas estas pessoas se mudaram para outro bairro, e surgiu uma segunda Chinatown em Toronto.

As Primeiras Nações do Canadá: exclusão e pobreza crônica

Mas podemos deixar os imigrantes de lado um pouco e olharmos para um grupo ainda mais discriminado e excluído; estamos falando dos membros das chamadas Primeiras Nações, as comunidades de aborígenes, ou melhor falando, os índios canadenses. 

Ao longo da história foram sendo renegados, a ponto de nos anos quarenta e cinquenta o governo federal resolver dar um ponto final na chamada "questão indígena": tomaram à força a grande maioria das crianças daquela época e as enviaram à escolas religiosas, onde era proibido falar o idioma da tribo de onde vinham, e o contato com os pais era reduzido a uma vez por ano, se houvesse contato de qualquer forma. 

Canadá pede desculpas aos índios

O massacre cultural foi incalculável: muitos perderam o contato com as respectivas famílias, não falavam mais o idioma da nação indígena a que pertenciam. Perderam suas raízes, mas o pior de tudo foram os abusos físicos e psicológicos: são muitos os relatos de agressões físicas, estupro, opressão e humilhação. Desintegração familiar, alcolismo, mendicância, suicídio. As consequências são visíveis até hoje entre as populações indígenas canadenses.

Em 2012 o governo de Stephen Harper fez um pedido formal de desculpas às vítimas dessa internação forçada das crianças indígenas. Um ato mais simbólico do que qualquer outra coisa, pois existe uma discussão muito séria a respeito do desaparecimento contínuo de mulheres indígenas ao longo dos últimos 20 anos, e o governo federal se recusa a lançar uma investigação específica sobre o assunto. O caso do serial killer da zona leste de Vancouver, o sr. Pickton, talvez não seja o único onde as vítimas preferenciais sejam justamente mulheres de origem aborígene.

Solidão e suicídio

Dizem que a taxa de suicídio no Quebec é uma das mais altas do mundo, comparával ao que se vê em países da Escandinávia, por exemplo. Mas quando vemos o ranking dos países com os maiores índices de suicídio, o Canadá está na 40ª posição. O Brasil está em 71º lugar nesta lista. A impressão que se tem é que o Quebec é líder em suicídio na América do Norte e no mundo. É verdade que apenas os territórios do norte do Canadá tem taxas de suicídio superiores à do Quebec, mas a de Alberta se aproxima da taxa quebequense. 

Em Montreal e Toronto há os que se jogam nos trilhos do metrô, causando parada do sistema de transporte e com isso transtorno para muita gente. Esses incidentes são mais comuns no final do inverno. Diz a lenda urbana que a razão disto é a depressão causada pela ausência de luz solar, o que causa queda de produção de vitamina D. Ou então que o isolamento causado pelo excesso de frio e neve faz com que as pessoas se sintam mais tristes e deprimidas.

Mas ainda que a média de casos de suicídios no Quebec esteja acima da média canadense, a situação é muito pior nos territórios de Yukon e Noroeste. Mas é ainda mais grave em Nunavut - se fosse um país independente teria a segunda taxa mais alta do mundo. A taxa de suicídio entre os inuits, nome correto para o que chamamos de esquimós, é proporcionalmente muito alta. Mas de qualquer forma, tanto entre os indígenas quanto na população em geral a taxa de suicídio entre os homens é muito mais alta do que entre as mulheres.

Inglês vs Francês

E para terminar este artigo vamos falar da famosa divisão linguística do Canadá, o maior país oficialmente bilíngue do mundo. No início havia apenas os franceses, mas os ingleses foram populando o continente e tomando territórios dos índios e dos franceses. Eventualmente eclodiu uma guerra e os franceses abdicaram dos seus direitos sobre o território, deixando a população francófona à mercê dos ingleses. Houve uma tentativa de deportação em massa dos francófonos em direção à França, e isso foi muito intenso na antiga Acádia, onde hoje é o estado americano do Maine e a província canadense de New Brunswick. 

Deportação em massa: allez en France!

Assim houve um domínio britânico sobre os quebequenses, que eventualmente puderam manter sua língua e seus costumes. Com o longo processo de amadurecimento do Canadá enquanto país soberano em relação ao Reino Unido, e com a revolução social do pós guerra e dos anos sessenta, o Quebec veio a reinvindicar privilégios dentro da Confederação e com isso criou atritos com outras províncias. 

O resultado disso tudo, depois de duas tentativas fracassadas de fazer o Quebec assinar a constituição do país - o então primeiro-ministro Pierre Elliot Trudeau negociou com Londres a repatriação dos plenos poderes constitucionais ao Parlamento em Ottawa; o movimento separatista na província criou força, e com isso convocou dois referendos sobre a independência. 

O Canadá não foi dividido por um triz

Em 1995 foi por pouco mais de quarenta mil votos que a Conferedação se manteve depois de cerca de 150 anos de existência. Foi essa pequena diferença de votos que os separatistas quebequenses perderam sua segunda tentativa de separar o Quebec do Canadá. Entre o primeiro referendo, em 1980, e o segundo, em 1995, mais de duzentas mil pessoas deixaram Montreal e se mudaram para Toronto, coincidentemente ou não na mesma época em que Montreal perdeu seu posto de principal metrópole canadense para sua rival mais ao sul. Até hoje a economia local da cidade não se recuperou do ponto de vista econômico.

Ficou o rancor de lado a lado. Os francófonos que apóiam a independência do Quebec dizem que o governo federal investiu muito dinheiro na campanha do referendo e que não foi uma disputa justa. Já os anglófonos discordam completamente disso, e com eles todo o resto do Canadá (ROC, "rest of Canada", como costumam se referir nas discussões sobre o tema). Há discriminação contra quebequenses em Ontário e em outras províncias no país. Em Montreal, quando nos referimos ao lado inglês e ao lado francês da cidade, falamos nas chamadas duas solitudes; uma ignora solenemente a outra.

Infraestrutura velha

O caso da Ponte Champlain, em Montreal, é emblemática e mostra uma realidade presente em todo o Canadá: a infraestrutura velha e que precisa ser trocada. Esta ponte em questão é a ponte com o maior volume de tráfego em todo o país, e é administrada pelo governo federal, e não pelo governo do Quebec. Sua construção foi apressada e os materiais utilizados não eram adequados. O que acontece é que esta ponte não foi feita para suportar o sal jogado para derreter o gelo na pista, e com isso a estrutura está comprometida. É muito comum pistas serem fechadas para obras urgentes de manutenção preventiva. Já anunciaram o início da construção da nova ponte, que deverá manter o nome Champlain, mas isso depois de quantos anos? Sabe-se que a ponte estava em estado lastimável pelo menos desde 1991, e até hoje a reposição da ponte tem sido adiada.

Mas apesar desta situação ser comum em todo o Canadá - pontes e viadutos, tubulação do esgoto, etc, em final de vida útil - e de como é difícil para o país ter que reconstruir tudo de novo, a situação no Quebec chega a uma nova dimensão: os prédios do centro também estão em péssimo estado de conservação. Nos últimos anos a imprensa publicou vários relatos de queda de revestimento dos edifícios no centro da cidade. Houve até vítima fatal, uma mulher que almoçava com seu marido quando uma peça de cerâmica com 25 quilos de peso cai sobre sua cabeça.

E os brasileiros nesta história toda?

Em Montreal muitos brasileiros vivem em uma bolha, pois passam a maior parte do tempo na universidade estudando, onde as pessoas são educadas e ponderadas, ou no trabalho, seja no banco, na empresa de informática ou engenharia. Vivem rodeados por pessoas que têm formação acadêmica, são preparados intelectualmente para conviver com estrangeiros. 

Algumas mulheres brasileiras reclamam do comportamento de muitos homens quando elas revelam que são brasileiras. As grosserias, o assédio explícito incomoda mesmo. Muitas vezes não é preciso dizer mais nada, basta a mulher dizer que é brasileira para enfrentar este tipo de problema. Cuidados redobrados em taxis e em baladas na cidade.

Mas não são poucos os brasileiros que reclamam de limitações profissionais, pois não conseguem empregos melhores do que operador de call center ou receptionista de college. Mesmo em empregos mais qualificados, há os que são preteridos pelos profissionais nativos, que falam o francês como língua materna.

Muitos brasileiros reclamam do frio, mas também são muitos os que aproveitam bem a temporada para esquiar, praticar snowboard, patins no gelo, visitar a cabana à sucre, ver esta paisagem que muda tanto com a neve. Há os que conseguem tirar férias neste período do ano e com isso aproveitam um pouco do verão no Brasil, e acabam perdendo um pouco a temporada do gelo e da gripe no Canadá.

Enfim...

Apesar disto tudo, apesar do frio, da solidão, da divisão linguística do país, da discriminação, da pobreza dos indígenas, ainda assim muitos gostam de viver no Canadá, onde constroem suas vidas e criam seus filhos. Como foi mencionado no início deste longo artigo, nenhum país do mundo é perfeito; talvez o paraíso seja perfeito, mas então não estamos falando deste mundo. Quando adotamos um novo país, não adotamos somente o lado bom e sorridente deste povo: levamos junto o lado triste e deprimente também. Ou os estrangeiros que amam tanto o Brasil gostam de ficar 45 minutos na fila da Polícia Federal, ou ser assaltados na porta do banco, ser sequestrado ou coisa pior, como é tão comum no Brasil? Ainda assim há os que se mudam para o Brasil e não saem mais de lá nem amarrados. Ou não é verdade?
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